E, No Entanto, Ela Move-se
[ 02-07-2024 ] [ #math #philosophy ]
Abstract: Desde a sua origem, os paradoxos de Zenão têm desafiado e fascinado pensadores de diversas áreas do conhecimento, exercendo uma profunda influência sobre a compreensão matemática e filosófica do infinito. Este artigo propõe-se a analisar não apenas os quatro paradoxos do movimento, mas também as várias soluções propostas ao longo da história, desde as tentativas iniciais de Aristóteles até as abordagens modernas baseadas em teorias rigorosas como o cálculo infinitesimal. Com isso, pretende-se demonstrar que, independentemente de Zenão estar correto ou não, a relevância dos seus paradoxos permanece imune à mudança.
Introdução
Um espectro tem assombrado a matemática, a física e a filosofia ao longo dos últimos 2500 anos: o espectro dos paradoxos de Zenão.
Apesar da indiscutível influência que o seu pensamento exerceu sobre o as noções contemporâneas dos conceitos de infinito, do contínuo e do espaço-tempo, a vida e obra de Zenão de Eleia permanecem envoltas num véu de mistério. Zenão terá nascido por volta do ano 490 a.C., na cidade de Eleia na Magna Grécia – a região grecófona do sul de Itália – e terá sido aluno de Parmênides, outro filósofo pré-socrático da escola Eleática, mas pouco mais é sabido sobre a sua vida [20]. Platão [16] e Diogenes Laërtius [12] escreveram sobre a vida de Zenão, nomeadamente sobre um encontro com Sócrates em Atenas e sobre a sua participação na revolta que tentou destronar o tirano que governava Eleia, mas grande parte dos historiadores consideram estas histórias como falsas ou, pelo menos, exageradas [8].
Assim como o seu professor e amigo Parmênides, Zenão era um monista. Os monistas acreditavam que a realidade – o Ser – era una, indivisível e imutável e que os sentidos nos induziam em erro levendo-nos a crer que a mudança e a pluralidade existiam quando não passavam de meras ilusões. No seu poema [19], entitulado “Da Natureza”, Parmênides descreve esta doutrina da seguinte forma:
“Só falta agora falar do caminho que é. Sobre esse são muitos os sinais de que o Ser é ingénito e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; não foi nem será, pois é agora um todo homogêneo, uno, contínuo.
[…]
Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços, sem princípio nem fim, pois gênese e destruição foram afastadas para longe, repelidas pela confiança verdadeira. O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa, e assim firme em si fica.”
Os paradoxos de Zenão terão sido apresentados como forma de defender esta doutrina contra os seus críticos, provando que a mundivisão dos mesmos levava a contradições.
Ao longo dos séculos, os paradoxos de Zenão inspiraram inúmeras tentativas de resolução, tanto no campo da filosofia quanto na matemática e na física. As soluções propostas variam desde abordagens puramente lógicas até interpretações físicas e matemáticas mais elaboradas. No entanto, mesmo após tanto tempo, os paradoxos de Zenão continuam a desafiar nossas concepções sobre a natureza do espaço, do tempo e da realidade.
Neste ensaio, faremos uma análise histórica dos paradoxos do movimento de Zenão e das múltiplas soluções propostas, assim como do papel tido pela matemática na busca pela resposta a estes paradoxos que intrigam a Humanidade há mais de 2500 anos.
Os paradoxos do movimento
De acordo com Proclus [17], Zenão terá escrito, no seu livro, um total de quarenta paradoxos que pretendiam demonstrar a incoerência daqueles que criticavam o monismo e o seu professor. Lamentavelmente, a passagem do tempo não foi simpática e esqueceu o livro que Zenão terá escrito relegando, assim, a grande maioria desses paradoxos à obscuridade da história.
Dos quarenta paradoxos, apenas nove são conhecidos através de reconstruções feitas com base em fragmentos que chegaram aos dias de hoje através dos seus críticos – nomeadamente Aristóteles [2] e Simplicius [22]. Nesta secção, apenas trataremos dos quatro paradoxos relacionados à questão do movimento e da mudança – A Dicotomia, Aquiles e a Tartaruga, a Flecha e o Estádio.
Segundo Francis Moorcroft [13,14], os quatro paradoxos do movimento podem ser divididos em dois grupos: dois deles lidam com a possibilidade de o espaço ser contínuo e os outros dois com a possibilidade deste ser discreto. Trish Glazebrook [10] vai um passo mais longe e considera que, dentro de cada grupo, um dos paradoxos assume que o tempo é contínuo e o outro que o tempo é discreto como mostrado na Tabela 1. Assim, Zenão tenta provar que, independentemente da concepção correta sobre a natureza do espaço e do tempo, o movimento e a mudança são logicamente impossíveis.
espaço \ tempo | Contínuo | Discreto |
---|---|---|
Contínuo | Aquiles e a Tartaruga | Dicotomia |
Discreto | Flecha | Estádio |
O paradoxo da Dicotomia
Suponhamos que alguém pretende percorrer uma determinada distância. Para que essa pessoa alcance o seu destino, necessita primeiro de percorrer uma distância equivalente a metade da distância total. No entanto, para chegar a esse ponto, é também necessário que percorra metade desse caminho, e assim sucessivamente, num processo que se estende ad infinitum. Assim, a pessoa teria de completar um número transfinito de tarefas – aquilo que Thomson [24] chamou de supertask – em tempo finito, pelo que a corrida não pode começar. Na formulação aristotélica [2]:
“A primeira afirma a não existência de movimento com o argumento de que aquilo que está em locomoção deve chegar à metade do caminho antes de chegar ao objetivo.”
O paradoxo de Aquiles e da Tartaruga
Consideremos agora o mítico Aquiles. Devido à sua rapidez, Aquiles dá uma vantagem à tartaruga contra a qual está a correr permitindo que esta parta com algum avanço. Quando Aquiles alcança a posição de onde a tartaruga partiu esta já se encontra noutro ponto. Passado algum tempo, Aquiles alcança o novo ponto, mas, novamente, a tartaruga já se moveu. Assim como no paradoxo anterior, este processo continua indefinidamente, pelo que Aquiles nunca alcança a tartaruga e como na realidade sabesmo que os corredores mais rápidos alcançam – e ultrapassam – os mais lentos, o movimento tem de ser uma ilusão. Aristóteles [2] resume o paradoxo da seguinte forma:
“Numa corrida, quem corre mais rápido nunca pode ultrapassar quem corre mais devagar, já que quem persegue deve primeiro alcançar o ponto de onde quem é perseguido começou, de modo que quem corre mais de vagar mantém sempre uma vantagem.”
O paradoxo da Flecha
O terceiro paradoxo assume que o tempo é composto por, e apenas por, instantes, quase como se das frames de um vídeo se tratassem. Como a cada instante a flecha ocupa um determinado espaço que não muda durante o mesmo, a flecha está parada em cada instante. Se não há movimento em nenhum instante e o tempo é composto unicamente por eles então não existe movimento. A descrição de Aristóteles é bastante críptica, pelo que grande parte das reconstruções se baseiam nos comentários de Simplicius [22] à obra aristotélica:
“O míssil voador ocupa um espaço igual a si mesmo a cada instante e, portanto, durante todo o tempo de seu voo; o que ocupa um espaço igual a si mesmo num instante não está em movimento, já que nada está em movimento num instante; mas o que não está em movimento está em repouso, já que tudo está ou em movimento ou em repouso: portanto, o míssil voador, enquanto está em voo, está em repouso durante todo o tempo de seu voo.”
O paradoxo do Estádio
O último paradoxo é o mais difícil de explicar, e, talvez por isso, tenha duas interpretações diferentes. Aristotles [2] descreveu-o da seguinte forma:
“O quarto argumento é aquele que diz respeito a corpos iguais que se movem ao lado de outros corpos iguais num estádio a partir de direções opostas - uns a partir do fim do estádio, os outros a partir do meio - a velocidades iguais, no qual ele pensa que decorre que metade do tempo é igual ao seu dobro.”
Na primeira interpretação desta passagem consideramos três filas de blocos uniformes e equidistantes, como mostrado na Posição 1 da Imagem 4. A primeira fila (A) está parada, a segunda (B) move-se em direção à primeira e a terceira (C) move-se em sentido contrário, mas com a mesma velocidade. Para chegar à Posição 2, cada um dos blocos B2, B3, C1 e C2 tem de passar por um bloco da fila A, mas, no mesmo tempo, B2 e B3 passam por dois blocos da fila C e C1 e C2 passam por dois blocos da fila B. O paradoxo é que estes blocos passam por dois no mesmo tempo que gastam para passar por apenas um.
A resposta de Aristótles [2] – e a solução mais aceite – a esta interpretação é bastante simples: Zenão confunde velocidade absoluta com velocidade relativa.
“A falácia [de Zenão] consiste em exigir que um corpo que viaja com uma velocidade igual demore um tempo igual para passar por um corpo em movimento e por um corpo do mesmo tamanho em repouso. Isso é falso.”
Se as filas B e C se movem com velocidades $v$ e $-v$ em relação à fila A, respectivamente, então a fila B move-se com velocidade $2v$ em relação a C. Assim, apesar de a fila B percorrer o dobro da distância em relação a C do que percorre em relação a A, ela fá-lo com o dobro da velocidade, pelo que o pode fazer no mesmo intervalo de tempo e o paradoxo não existe.
Insatisfeitos com a facilidade que Aristotles teve em refutar o paradoxo do estádio, alguns historiadores, como Owen [15] e Tannery [23], acreditam que não era Zenão que estava errado, mas sim Aristóteles que, intencionalmente ou não, criou um espantalho do paradoxo para o conseguir refutar. Estes estudiosos acreditam que Zenão não cometeria um erro tão evidente e vêm este paradoxo como uma refutação da teoria atómica do espço e do tempo, i.e. o espaço e tempo discretos da Tabela 1.
Suponhamos que os blocos ocupam pontos adjacentes do espaço e que a passagem da Posição 1 para a Posição 2 ocorre em apenas um instante. No primeiro instante – Posição 1 – os blocos B3 e C1 ocupam posições adjacentes, mas no segundo instante B3 ocupa uma posição adjacente a C3. Para que isto aconteça, B3 teria de ter ocupado uma posição adjacente a C2, mas não existe nenhum instante em que isso fosse possível.
Apesar da beleza do padrão da Tabela 1, os críticos desta interpretação, nomeadamente Booth [4], vêm esta interpretação como anacrónica:
“Parece-me que aqueles que tentam melhorar os argumentos de Zenão além do que provavelmente eram, não estão realmente a prestar um serviço a Zenão; estão apenas a demonstrar uma grande falta de imaginação em relação às limitações do tempo de Zenão. Eles falham em perceber que, nesses tempos primordiais, formulações tão claras como “Distância é igual a Velocidade multiplicada pelo Tempo” ainda não tinham sido feitas. Se eles conseguissem perceber que os exemplos de Zenão de Aquiles e do Estádio foram talvez os primeiros indícios que o homem já teve de tais equações simples, chegariam a uma estimativa muito mais elevada da verdadeira grandeza de Zenão. Para elogiar Zenão, não há necessidade de ignorar a evidente superficialidade das paradoxos tal como apresentados; mas há toda a necessidade de entendê-lo em relação ao seu próprio tempo”
Soluções dos Paradoxos
Soluções propostas na Grécia Antiga
Diogenes e o Paradoxo da Dicotomia
Inicialmente, poderia pensar-se, assim como segundo Simplicius [22] fez Diógenes, o Cínico, que, aquando de um confronto com algo como o paradoxo da Dicotomia, nomeadamente, com a sua conclusão de que o movimento é uma impossibilidade, seria resposta suficiente simplesmente começar a andar e concluir trivialmente que é possível percorrer a distância total. De facto, não é difícil realçar a experiência do movimento como algo óbvio; contudo, esta resposta, de um ponto de vista lógico, não aparenta ser particularmente satisfatória. Afinal de contas, monistas como Zenão e Parménides poderiam apenas contrapor que as aparências podem ser enganosas e que, do seu lado do argumento, possuem neste paradoxo uma prova lógica de que o movimento é uma impossibilidade. Assim, quem não aceita esta conclusão deve ser capaz de produzir uma explicação relativa ao que está errado com o argumento de Zenão, em vez de simplesmente recorrer aos sentidos e ao empiricismo.
Aristótles e o Paradoco da Dicotomia
Uma outra resposta ao Paradoxo da Dicótomia, também proveniente da Grécia antiga, que fornece um maior nível de competência, vem de Aristóteles na sua obra “Física” [2]. Este afirma que, à medida que se divide a distância percorrida, é também necessário dividir o tempo gasto; ou seja, é necessário 1/2 do tempo total para percorrer 1/2 da distância, 1/4 do tempo total para percorrer 1/4 da distância, e assim sucessivamente. Deste modo, cada fração da distância tem uma fração correspondente do tempo finito necessário para a percorrer e, como tal, a sua totalidade pode ser percorrida em tempo finito.
Ainda que, atendendo a conhecimentos contemporâneos de matemática, esta solução pareça trivial, é de notar que entender o movimento através de uma correspondência entre a distância percorrida e o tempo necessário para a percorrer foi um grande avanço, por parte de Aristóteles, face aos seus antecessores. Contudo, esta solução deixa uma questão por resolver.
Na resposta de Aristóteles considera-se que o tempo necessário para percorrer a totalidade da distância é constituído por um número infinito de secções finitas (i.e., …1/8 + 1/4 + 1/2 do tempo total), o que, seguindo a lógica original de Zenão, aparenta dizer que necessitamos então de tempo infinito para a percorrer.
Soluções baseadas na invenção do Cálculo
Alguns matemáticos e historiadores, como Carl Boyer, argumentam que os paradoxos de Zenão não passam de problemas matemáticos, e que as aparentes contradições são facilmente resolvidas quando estes são “enunciados na terminologia matemática exacta das variáveis contínuas e dos conceitos de limite, derivada e integral” [5] que existem desde o desenvolvimento do cálculo no século XIX. Em particular, através da definição epsilon-delta de limite, os matemáticos Weierstrass e Cauchy desenvolveram uma formulação rigorosa para resolver problemas matemáticos que envolvem processos infinitos [9]. Em “Our Knowledge of the External World” [18], Bertrand Russell adiciona também que a invenção do cálculo forneceu as ferramentas necessárias para lidar com os paradoxos de Zenão, permitindo o tratamento preciso do movimento contínuo e da mudança, reconciliando a natureza aparentemente paradoxal de dividir espaço e tempo em partes infinitas. Russell diz também que parte da confusão proveniente dos paradoxos de Zenão advém de um entendimento incorreto sobre o infinito, e como tal, é possível compreender as aparentes contradições presentes nos paradoxos através de uma compreensão matemática do infinito.
Soluções com somas infinitas (Paradoxo da Dicotomia)
Para esta solução, é construído um argumento sobre como completar o número infinito de passos, diga-se, no contexto do Paradoxo da Dicotomia, num valor finito de tempo. Hoje em dia sabe-se que a soma infinita associada a este paradoxo (i.e. …1/8+1/4+1/2) é uma série geométrica, isto é, a soma de um número infinito de termos com razão constante entre termos sucessivos. Ora, é possível definir uma série geométrica de forma geral com a seguinte fórmula:
∞
Σ arⁿ = a + ar + ar² + ar³ + ...
n=0
É possível provar que este tipo de séries converge para um valor finito se |r| < 1.
Valor esse que é dado pela formula:
∞ a
Σ arⁿ = -------
n=0 1 - r
Para efeitos deste trabalho não será apresentada a prova geral da formula mas sim uma prova para o caso concreto de a = r = 1/2:
1 1 1 1 ⎛1⎞² ∞ 1 ⎛1⎞ⁿ 1 / 2
- + - * - + - * ⎜-⎟ + ... = Σ - * ⎜-⎟ = --------- = 1
2 2 2 2 ⎝2⎠ n=0 2 ⎝2⎠ 1 - 1/2
que corresponde à soma infinita presente no Paradoxo da Dicotomia. Provando que o resultado da soma é 1, parece então possível concluir que o percurso de passos infinitos pode ser completado, bem como que o destino final é atingido.
Antes de provarmos a convergência desta série, necessitamos das seguintes definições que podem ser encontradas em qualquer livro de Análise Real [1]:
Def: Uma série inifinita converge para algum valor α ∈ ℝ se a sequência de somas parciais da mesma converge para o mesmo valor α ∈ ℝ.
Def: A sequência Sₙ converge para algum valor α ∈ ℝ se, para qualquer ε ∈ ℝ, existe um natural N ∈ ℕ tal que para qualquer n ∈ ℕ, com n ≥ N, se tem que |Sₙ - α| < ε.
Para efeitos desta prova é suficiente pensar em sequências como listas infinitas de termos Aₙ e na sequência de somas parciais como uma sequência em que o n-ésimo termo é da forma:
n
Sₙ = A₁ + A₂ + ... + Aₙ = Σ Aᵢ
i=1
Em particular, no caso do somatório implícito no Paradoxo da Dicotomia temos:
S₁ = 1/2
S₂ = 1/2 + 1/4 = 3/4
S₃ = 1/2 + 1/4 + 1/8 = 7/8
...
Sₙ = 1/2 + 1/4 + ... + 1/2ⁿ = 1 - 1/2ⁿ
Ora, deseja-se então provar:
∞ 1 ⎛1⎞ⁿ
Σ - * ⎜-⎟ = 1
n=0 2 ⎝2⎠
Pela Definição 1, para provar a conclusão desejada, é necessário provar que Sₙ converge para 1. Considere-se um valor ε ∈ ℝ⁺, arbitrariamente pequeno. Queremos encontrar um valor i tal que, 1 - Sⱼ < ε e j ≥ i. Considere-se todo o N ∈ ℕ que satisfaz 1/2ᴺ < ε. Ora, considere-se n ℕ, n ≥ N. Então, a diferênça entre o n-ésimo termo da sequência Sₙ e 1 é:
⎜ 1 ⎜ ⎜ 1 ⎜ 1 1
|Sₙ - 1| = ⎜1 - - - 1⎜ = ⎜ - - ⎜ = - ≤ -
⎜ 2ⁿ ⎜ ⎜ 2ⁿ⎜ 2ⁿ 2ᴺ
O que significa que, qualquer termo nestas condições, difere de 1 por menos que ε, pelo que, pela Definição 2, se conlcui que a sequência converge para 1.
Solução com uso de Limites (Paradoxo da Flecha)
Considere-se agora o Paradoxo da Flecha, particularmente, é de relembrar que, ao enunciar este paradoxo, Zenão parece assumir que, num qualquer dado instante, a flecha está parada. Para efeitos desta solução, isto será interpretado como equivalente a dizer que num qualquer dado instante a flecha tem uma velocidade instantânea (i.e., valor indicativo do quão rápido um objeto se move num dado instante) igual a zero. Essa premissa é essencial para que se crie um paradoxo e, como tal, construir um argumento de que a mesma é falsa pode servir como solução para o mesmo.
Ora, para propósitos deste argmumento, imagine-se que a sequinte função d indica a distância percorrida pela flecha (em metros) passados t segundos:
d(t) = -5t² + 50t
A existência desta função parece estar de acordo com a realidade observada, visto que, aquando do lançamento de uma flecha, é verificado que esta viaja uma dada distância. Contudo, note-se que isto contradiz a conclusão de impossibilidade do movimento proposta por Zenão, pelo que de seguida será argumentado que Zenão chega a tal resultado partindo de uma premissa falsa.
Fazendo uso da função d(t) diga-se que, inicialmente, quer-se calcular a velocidade média a que a flecha viaja entre 2 e 3 segundos após ser lançada através da seguinte formula:
d(3) - d(2) 105 - 80
V[2,3] = ------------- = ---------- = 25 m/s
3 - 2 1
Ou seja, entre os 2 e os 3 segundos a flecha teria uma velocidade média de 25 m/s. Contudo, o que se deseja calcular seria, por exemplo, a velocidade da flecha no instante em que passaram exatamente 2 segundos após ter sido lançada. Para tal, considere-se não o intervalo entre 2 a 3 segundos, mas sim um intervalo entre 2 e t segundos, onde t é um valor arbitrariamente pequeno. Então, tem-se:
d(t) - d(2) -5t² + 50t - 80
V[2,t] = ------------ = ----------------- = -5(t-8)
t - 2 t - 1
Agora, utilizando o conceito de limite observa-se que:
lim -5(t-8) = 30
t→2
Pelo que aparenta, pode-se concluir que a velocidade da flecha após 2 segundos de ser lançada é 30 m/s. Mesmo admitindo que podemos apenas afirmar que a velocidade da flecha se aproxima de 30 m/s e não é exatamente 30 m/s, a premissa de Zenão de que num dado instante a flecha tem velocidade igual a zero parece, então, ser falsa. Esta solução equivale a dizer, na linguagem da análise, que a derivada da posição no instante 2 é 30, isto é, v(2) = d’(2) = 30.
Solução baseada em Indeterminações (Paradoxo da Flecha)}
Uma solução alternativa para o paradoxo da Flecha, semelhante à anterior, mas sem a necessidade de modelar o movimento através de uma função, foi apresentada em 2006 por Mark Zangari [25]. Zanagari acredita que a falácia de Zenão está em afirmar que a velocidade da flecha em cada instante é nula quando a sua lógica apenas permite concluir que se trata de um valor indeterminado da forma v = 0/0. O argumento baseia-se em provar que, por se tratar de uma indeterminação, a velocidade instantânea da flecha pode assumir qualquer valor finito e não apenas $0$ como Zenão propõe.
Comecemos por considerar a seguinte equação:
0
x = -
0
Como x ∈ ℝ se trata de um número real, podemos representá-lo na forma x = y/z onde y ∈ ℝ é um número real e z ∈ ℝ \ {0} um real não nulo. Substituindo x na equação anterior, obtemos a seguinte equação equivalente:
y 0
- = -
z 0
Que podemos reescrever como
y0 = z0
Como 0 é o elemento absorvente da multiplicação,
0 = 0
Ora, esta gualdade é verdadeira para qualquer valor de y e z, pelo que a equação inicial tem um número infinito de soluções. Nas palavras de Zangari [25]:
“A cada instante, [a velocidade] é indeterminada e, por isso, não se pode contrariar a possibilidade de ser um qualquer valor finito uma vez que $v = 0/0$ é consistente com $v = $ qualquer velocidade. […] O paradoxo da flexa acenta na premissa implícita, mas incorreta, de que, $0/0$ é necessariamente igual a $0$, mas como isto não é verdade não temos nenhum paradoxo – apenas um problema mal formulado.”
Os paradoxos e a Matemática
Com o advento da análise e do tratamento matemático do infinito por matemáticos como Cantor, Weirstrass, Dedekind e Cauchy, muitas pessoas declararam que os paradoxos de Zenão teriam sido resolvidos. No entanto, o significado e a validade da resolução matemática desses paradoxos estão longe de ser consensuais.
A principal crítica feita a esta solução é que a matemática não é suficiente; além da solução formal que é válida nesse domínio, é necessária uma solução real que seja válida no mundo físico. Esta crítica baseia-se na compreensão de que existe uma separação entre a matemática e a realidade, uma vez que a matemática trata de sistemas formais, mas não é capaz de garantir que estes descrevem o mundo real. Até mesmo grandes defensores da solução padrão concordam com esta ideia. Nas palavras de próprio Carl Boyer [5]:
“A matemática é incapaz de especificar se o movimento é contínuo [ou não], pois lida apenas com relações hipotéticas e pode fazer das suas variáveis contínuas ou descontínuas à sua vontade. […] A intuição dinâmica do movimento é confundida com o conceito estático de continuidade. O primeiro é uma questão de descrição científica a posteriori, enquanto o último é uma questão unicamente de definição matemática a priori. O primeiro pode, consequentemente, sugerir que o movimento pode ser definido matematicamente em termos de variáveis contínuas, mas não pode, devido às limitações da percepção sensorial, provar que deve ser assim definido.”
Precisamente por entenderem esta crítica, filósofos e matemáticos como Bertrand Russel procuraram legitimar a análise matemática da realidade. Segundo eles, como temos evidências empíricas suficientes para confiar nas teorias ciêntíficas atuais e a matemática é essencial e indispensável para o sucesso dessas teorias, então essas evidências também corroboram a aplicabilidade da matemática enquanto ferramenta para analisar o mundo que nos rodeia. No entanto, alguns críticos continuam a não aceitar a aplicabilidade da matemática e apontam a solução baseada na convergência da série para 1 como prova disso.
Conclusão
Quer consideremos os paradoxos de Zenão como falácias, simples problemas de matemática aos quais a análise conseguiu responder ou como problemas físicos e metafísicos, a sua influência na história da matemática, da filosofia e da física é inegável. Seja a matemática a linguagem do universo ou não, a verdade é que, como afirma Russel em “The Problem of Infinity Considered Historically” [18], estes paradoxos serviram como base de grande parte das teorias do espaço-tempo que surgiram desde que foram propostos.
Neste ensaio abordamos a história dos paradoxos e das suas soluções, mas deixamos uma questão final para os leitores: será que “todo o mundo é composto de mudança” como canta José Mário Branco, ou estaria Zenão correto em afirmar que o movimento - e, por consequência, a mudança - é uma mera ilusão?
A primeira objeção que levantam é que esta solução se baseia numa má interpretação do significado de “convergir”: a série não é igual a 1, ela aproxima-se de 1 sem nunca o alcançar. Moorcroft [13] vai mais longe e afirma que, por esse motivo, “em vez de fornecer um argumento contra Zenão, a matemática está, na verdade, a concordar com ele” dizendo que a corrida nunca é completada e que Aquiles nunca alcança a tartaruga.
A segunda objeção é de que, apesar de ser natural na matemática, o conceito de somas infinitas não é físicamente realizável. Black [3] e Thomson [24] acreditam que é impossível realizar um número transfinito de tarefas – uma supertask – num espaço finito de tempo pelo que, mesmo que o tratamento matemático do paradoxo da Dicotomia estivesse correto de um ponto de vista formal nunca estaria de um ponto de vista físico.
A ideia de que supertasks não são realizaveis levou a que Jeffrey Kidder desenvolvesse o conceito de uma Máquina de Turing de Tempo Infinito (MTTI), que mais tarde foi revisitado por Hamkins e Lewis [11]. Ao contrário de Máquinas de Turing normais, estas são capazes de computar algoritmos com um número transfinito de passos, ou seja, algoritmos que são supertasks. Desta forma, as MTTI são um modelo de computação mais poderoso do que as clássicas, uma vez que são capazes de resolver o Halting Problem clássico [6]. Por serem mais poderosas computacionalmente, estas máquinas suportam a concepção apresentada por Black e Thomson de que supertasks não são realizáveis, uma vez que isso implicaria que as MTTI existissem, contrariando a tese de Church-Turing [7], que postula de que as Máquinas de Turing, o Cálculo-λ de Church e as Funções μ-recursivas de Gödel correspondem a todas as funções computáveis no nosso universo.
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