Nada se perde, tudo se sampla

[ 02-04-2023 ] [ #music ]

Hegel observa algures que todos os grandes factos e personagens da história universal aparecem, por assim dizer, pelo menos duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar que o mesmo acontece na música, primeiro como inspiração, depois como inovação. “Good Times” de Chic [1] através de “Rapper’s Delight” de Sugarhill Gang [2], “Mamma Mia” de Abba [3] através de “Poetas de Karaoke” de Sam the Kid [4], “Funky Drummer” de James Brown [5] através de “Fight The Power” de Public Enemy [6], “La Di Da Di” de Slick Rick [7] através de tantas outras [8], [9]. E o mesmo ocorre numa quantidade incomensurável de músicas através de uma técnica comum: o Sampling.

Leitorxs mais atentxs, poderão ter notado que o parágrafo anterior é, de certa forma, ele mesmo um produto de sampling. Neste caso, o sample é um texto, “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” escrito por Karl Marx [10], mas, no fundo, é sobre esta reinterpretação, referência, homenagem e inovação que falamos quando se discute sampling.

Mas, afinal, do que se trata “esta arte que para eles ainda é novidade” [11]? Em suma, o sampling é a utilização e manipulação de partes de um som para a criação de outro. De uma forma mais poética, e samplando Sam the Kid, é a “procura da perfeita repetição” [11], colocar “a minha camuflagem” [11] num sample e dar-lhe uma nova vida, seja ele proveniente de “um êxito com rodagem” [11] ou de “um disco phat nunca descoberto” [11].

Apesar de surgir cerca de trinta anos antes, na França da década de quarenta, através da musique concrète de Pierre Schaeffer [12], [13], é apenas com o Hip-Hop [13] e a democratização do acesso a técnologia de sampling, que esta técnica atinge a sua relevância. O desejo de DJs como Kool Herc e Grand Master Flash de satisfazer a pista e aumentar a duração das partes mais rítmicas e dançáveis das músicas [14], leva à disseminação desta técnica, permitindo que novos artistas se expressem e utilizem o velho como combustível na reação que permite a criação do novo.

Tanto Nas com “No idea’s original, there’s nothing new under the sun” [15], como Uno com “Já senti que não há nada de novo, Nunca mais vai haver E que na verdade nunca houve” [16], abordam a ideia de que as novas obras, na realidade, não são novas, e que em vez disso são um produto do que veio antes. É de notar que o início deste fenómeno não se prende com a origem do sampling, mas sim com a origem da arte como um todo. Poderíamos até dizer, de forma ligeiramente hiperbólica, que a história de toda a arte até aqui é a história do sampling em alguma das suas muitas formas.

Arte rupestre e os seus motivos de caça, arte renascentista e a sua inspiração clássica, colagens e os seus elementos, música com samples e música samplada, em suma, inovação e inspiração, estiveram em constante interação, uma interação ininterrupta, ora de forma consciente ora de forma inconsciente, uma interação que de cada vez resultou numa nova vida para algo mais antigo [17].

Foi através do sampling que encontrei a “trajectória de outros craques de outras gerações” [18]. Foi com samples que conheci os “vinis de Tim Maia” [19], que ouvi “os cantos subtis de Billie Holiday” [19], que senti “a matriz do Soul triste de Marvin Gaye” [19] e que dancei “Ao ritmo de James Brown e Dennis Coffey” [20]. Todos estes artistas são fenomenais, diria até geniais, mas a sua música foi criada para uma audiência e, principalmente, para uma época diferente. É aqui que o sampling entra. Ao adaptar e recriar estas músicas para uma nova era o sampling permite que uma nova geração, com novos gostos e novas formas de ouvir música, as descubra, que, nas palavras de Sam The Kid, oiça “temas e temas feitos antes do [seu] nascimento” [11]. Assim, é o próprio sampling que alimenta este ciclo de inspiração e inovação, permitindo que o pó dos vinís perdidos em caixas de segunda mão seja limpo e que as suas notas não se percam num “passado [que] não alimenta o meu presente” [21].

Espero que da próxima vez que ouçam uma música que vos pareça familiar se lembrem deste ciclo de inspiração e inovação, e que se lembrem que apesar da máxima de que quem esquece a história está condenado a repeti-la, no caso da música, é exatamente para não a esquecermos que a repetimos.

[1] Chic, “Good times.” [Song], 1979.

[2] Sugar Hill Gang, “Rapper’s delight.” [Song], 1979.

[3] Abba, “Mamma mia.” [Song], 1975.

[4] Sam The Kid & GQ, “Poetas de karaoke.” [Song], 2006.

[5] James Brown, “Funky drummer.” [Song], 1970.

[6] Public Enemy, “Fight the power.” [Song], 1989.

[7] Slick Rick & Doug E Fresh, “La di da di.” [Song], 1985.

[8] Chris Parkin, “The winstons, james brown and public enemy are among the most sampled artists in music – and this is who has sampled them,” Red Bull. 2Red Bull, 2022.

[9] Bootstrap, “The most sampled song in hip-hop.” [Video], 2020.

[10] Karl Marx, The eighteenth brumaire of louis bonaparte. 1852.

[11] Sam The Kid, “À procura da perfeita repetição.” [Song], 2006.

[12] Jean de Reydellet, “Pierre schaeffer, 1910-1995: The founder of “musique concrète”,” Computer Music Journal, vol. 20, no. 2, pp. 10–11, 1996.

[13] Simon Reynolds, “Tapeheads: The history and legacy of musique concrète,” Tidal Magazine. May 2021.

[14] Elias Chavez, “The evolution of sampling in hip-hop, from the sugarhill gang to a tribe called quest,” Insider. Insider, 2023.

[15] Nas, “No idea’s original.” [Song], 2002.

[16] Uno, “Nada de novo.” [Song], 2019.

[17] Karl Marx and Frederick Engels, Manifesto of the communist party. 1848.

[18] Sam The Kid, “Sendo assim.” [Song], 2018.

[19] Valete, “Samuel mira.” [Song], 2018.

[20] Phoenix RDC, “A história.” [Song], 2018.

[21] Slow J, “Comida.” [Song], 2015.