Alta Costura: a revolução foi samplada

[ 18-01-2025 ] [ #music ]

Lenin abre “O Estado e a Revolução” com uma constatação amarga: “Enquanto vivos, as classes opressoras recompensam os grandes revolucionários com incessantes perseguções; acolhem as suas doutrinas com o ódio mais selvagem, com as mais furibundas campanhas de mentiras e de calúnias. Depois de mortos, procuram canonizá-los, cercando o seu nome com uma certa auréola com o fim de consolar as classes oprimidas e de as mistificar; para isto esvazia-se a sua doutrina revolucionária do respectivo conteúdo, aviltando-a e embotando-lhe o gume revolucionários.” Se ainda restassem dúvidas de que a afirmação de Lenin continua válida mais de um século depois, o último álbum de Van Zee serve como uma prova inequívoca disso.

Alta Costura, trabalho em que a linha e a máquina de costura são partilhadas pelo rapper Van Zee e pelo produtor Frankieontheguitar, apresenta-se com uma missão nobre: dar uma nova roupagem a uma manta de retalhos de clássicos da música portuguesa, aproximando-os de um público mais “estiloso”. Pena que, entre demasiadas referências a marcas de luxo, essa nobre missão se tenha perdido e traduzido no mais puro desrespeito e desprezo pelo material original.

Com este álbum, o rapper Madeirense e o produtor do Porto juntam-se finalmente à caixinha da “portugalidade” hantológica, para utilizar o termo que Mark Fisher recupera de Jacques Derrida, que tem assombrado a música portuguesa nos últimos anos. De David Bruno a Cláudia Pascoal, a linha entre aquilo que é uma expressão do amor próprio da música portuguesa e o simples aproveitamento de uma nostálgia bacoca é bastante ténue, e em Alta Costura não poderia ser diferente. Entre samples de Virtus, Os Azeitonas, Bezegol, Zeca Afonso e outros, o corte deixa mais que claro que nos encontramos perante um caso patológico do segundo.

Mal carregamos no botão de play, somos apresentados a um sample de Os Bravos de Zeca Afonso. Uma espécie de rebobinar da cassete do tempo — não fosse o próprio sample estar em reverse — que nos remete a uma memória de Abril, logo traída pelo início da letra. Não são precisas muitas palavras para que, em poucos segundos, todo o peso histórico de sofrimento, luta e revolução presente na música de Zeca Afonso se perca completamente: o que poderia ter sido uma evocação da luta coletiva contra a ditadura fascista que nos oprimiu de forma violenta durante 48 [longas] noites (oiçam o som do Óssio e do Saraiva para perceber como se faz) transforma-se numa comodificada exaltação do sucesso individual.

Infelizmente, este não é um caso isolado na música portuguesa. Em 2023, fomos apresentados a Estrada, uma música onde Pedro Mafama recorre a um sample do clássico Hino dos Mineiros do Grupo Coral dos Mineiros de Aljustrel. Se o original é uma canção trágica que remete à dor e ao sentido de luta e união, ao relembrar que “Nas Minas de Aljustrel / Morreram muitos mineiros”, a farsa criada por Mafama dissipa completamente esse significado, substituindo-o por comparações superficiais, futeis e, sinceramente, incensíveis, aos desgostos amorosos do cantor. Afinal, de que importa a morte de tantos mineiros se o Mafama conhece as curvas da cara de alguém? Mais uma vez, o sofrimento e a luta coletiva são relegados para segundo plano – aparecendo apenas como back vocals durante o refrão – enquanto o indivíduo assume o papel principal.

O que antes era um símbolo de luta, um catalizador de transformação social, é agora esvaziado de todo o seu potencial de mudança. É absorvido pela lógica do capitalismo tardio e transformado em apenas mais uma peça do sistema que originalmente visava combater. Uma mercadoria despolitizada, extirpada do seu conteúdo revolucioário, que se torna algo puramente estético e vazio pronto para ser consumido de forma passiva por um sujeito neoliberal desconectado do mundo que o rodeia.

A cantiga é uma arma, mas é preciso ter pontaria.